segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O brigadeiro Arcoverde: o homem e a lenda

    Um dos personagens mais originais do litoral sul potiguar foi André de Albuquerque Maranhão Arcoverde, famoso por episódios violentos na então Província. O prenome, André, se repetia, familiarmente, na passagem do século XVIII para o XIX, quando seu avô, seu tio, seus primos e até seu filho, assim, foram batizados. Provavelmente, uma ligação com o padre André de Soveral, figura central do morticínio de Cunhau, ocorrido no Século XVII.
    O sobrenome Arcoverde foi herdado da hexavó de André, uma índia tabajara que, ao casar com Jerônimo de Albuquerque, foi batizada como Maria do Espírito Santo Arcoverde. A adoção desse sobrenome surgiu na inércia das rebeliões nativistas e do nacionalismo nascente, que foi determinante para o uso de ufanismos. A alcunha de “Brigadeiro” nunca possuiu uma explicação lógica. Parece ter sido uma criação dos adversários políticos, que o colocava como “briguento”, em desavenças com parentes e vizinhos.
    Vivia em um feudo próprio, onde legislava à exceção. Teria sido o vingador do tio homônimo, mártir de 1817. Na sua milícia particular, estava o negro Simplício, conhecido como “Cobra Verde”, que não se separava de uma arma, apelidada de “Meio Berro”. Cascudo dizia que ela “matara uma novilha antes de terminar o berro iniciado”. A espingarda mais famosa do Estado, passando pelas mãos de parentes, chegou ao Instituto Histórico. Possuía o cano serrado, que, para muitos, seria o segredo de sua capacidade de mira e letalidade.
    É difícil de entender como esse tipo de arma, uma carabina Minié, já estaria em uso no Cunhau, na primeira metade do século XIX, pois essa tipologia de armamento surgiu com a nova tecnologia balística, em 1847, permitindo um carregamento mais rápido. Chegou ao Brasil em 1857 e foi muito usada na Guerra do Paraguai. Serrar o cano dava mais praticidade ao atirador.
    Olavo de Medeiros apontou o interesse de Arcoverde em modernizar sua produção de açúcar, com a compra de um engenho moderno. Parecia estar bem à frente do seu tempo nesse sentido. Por isso, teria tanto interesse em terras agricultáveis na região e queria anexar as propriedades de seus irmãos solteiros, José Inácio e Maria Cunhau, sem herdeiros diretos. Colocando de lado as lendas que o envolveu, parecia bem equilibrado em seus investimentos.
    A família Maranhão já era bastante hostilizada desde a morte do seu tio. O partido liberal parecia criar monstruosidades ao seu respeito e que foi incorporado ao folclore popular, criando a fama de seus 200 crimes e de que quem “lhe pedisse proteção, em troca de sua lealdade, seria ali protegido”.
    Viver nunca foi seguro diante do turbilhão infame e pavoroso que se erguia sobre sua cabeça. O medo estava presente em tudo: em errar, tentar, sonhar, amar, viver, morrer etc. Correndo atrás de uma imagem que forjou de si próprio, Arcoverde superou a própria ambição, matando-se para continuar a existir. Aqueles que ficaram vivos nunca compreenderam o seu ato extremo.
    O fogo morto da chaminé chora na roda do tempo e os caminhos ainda são os mesmos. Mas os caminhantes não voltam mais. Aquela voz alta, que ecoava por todas as distâncias do vale, virou apenas lenda, e as janelas da memória se fecharam. Não existe certeza, a não ser a de que, um dia, todos retornarão ao mesmo pó.
 
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    Este artigo é parte de uma série de textos voltados à divulgação do acervo do IHGRN e da história do Rio Grande do Norte, veiculada aos domingos no espaço cativo do Instituto na coluna Quadrantes do jornal Tribuna do Norte.

Artigo: Francisco Galvão
Imagem: cortesia do Instituto Tavares de Lyra