segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O missivista do mar

 

    Até concluir minha segunda graduação, só conhecia Hélio Galvão de ouvir falar. Nascido em 1916, Hélio Mamede de Freitas Galvão foi um brilhante jurista, tabelião, historiador, antropólogo, sociólogo, jornalista, cronista, professor e católico exemplar; coisas que só fiquei sabendo depois de me apaixonar por seus escritos. Foi sentado na calçada e lendo coisas para meu pai que me deparei com suas crônicas magníficas que falava sobre as coisas vividas pelo povo simples da beira da praia. 
    Papai, que foi acometido pelo glaucoma, continuava sedento por saber e exigia de mim novas leituras. Já havia lido Oswaldo Lamartine para ele, com suas elucubrações sobre os sertões, e foram as “Cartas da Paria” nos deram horizontes para novas conversas. Meu pai confirmava aqueles velhos hábitos do povo da região e íamos aprofundando conhecimentos na etnografia do Litoral Sul Potiguar.
    Quando falo das “Cartas da Praia”, também me refiro às “Novas Cartas da Praia” e às “Derradeiras Cartas da Praia”, crônicas essas publicadas originalmente no jornal Tribuna do Norte, do seu grande amigo Aluízio Alves, e tornadas livro posteriormente, se transformando em uma obra icônica para quem quer entender o litoral.
    Hélio, em suas “Cartas”, nos apresenta o mar, as grandes lagoas, o pescador, o peixe, a vara e a rede de pescar, a mata atlântica, o tabuleiro e o manguezal. Não é possível uma compreensão completa do litoral sem ler as “Cartas da Praia”. Das lendas da “Comadre Fulozinha” até o “Haja Pau”, passando pelo pavoroso “Bicho Berrador”, o missivista contava as histórias que o povo sabia.
    Sobre a alimentação explicou os modos de comer e fazer comidas no litoral.  Comentando as frutas da região, dissertou sobre o caju, a mangaba e o coco, fez também citações sobre os frutos selvagens como o araçá, a batinga, o camboim, a Guabiraba, a maçaranduba e a ubaia. Suas epístolas trataram dos peixes e das técnicas de pescar. Nomeou a cioba, o anequim, a albacora, o boto, o cação, a cavala, o avoador, entre outros. Falando sobre o homem do litoral citou nomes e utensílios comuns como o covo, o remo, o torrador de café, os bilros, o fuso, o machado, explicações sobre a vela, os barbos, canoas e jangadas. 
    Nas “Cartas da Praia” estão reminiscências do povo que ia até sua residência, em Tibau do Sul, para puxar conversas. Por isso foi capaz de descrever tanta coisa sobre o lugar. Percebe-se em suas palavras que são assuntos retirados dos livros, mas conhecimentos ainda envoltos nas cascas da matéria-prima. Essas missivas salgadas revelaram ainda personagens emblemáticos das beiradas do Atlântico, pessoas simples e seus hábitos cotidianos, com seus codinomes e genealogias, fazendo uma antropologia física dos habitantes. Também trata do folclore e das devoções populares.
    Da geografia, Hélio relata a linda e suave paisagem do seu lugar amado, com seus morros, barreiras, dunas, falésias, rios, barras, canais e lagoas. Entrando na toponímia, esclarece mistérios da língua que expressam os lugares que “até os nomes fazem sonhar”. Está tudo lá, de forma límpida e clara, fazendo qualquer um entender: o cotidiano de quem vive à beira-mar. Deixou-nos, é verdade, como disse sua biógrafa, “o saber como herança”. Mas não foi só isso. Deixou-nos, também, um exemplo de homem de bem a ser seguido.

Artigo: Francisco Galvão
Imagem: Maria Simões