
IHGRN: O senhor foi um dos principais integrantes da equipe de Paulo Freire na experiência de Angicos. Participou também da aplicação em outros países. Quais países foram esses?
Marcos Guerra: O que eu fui fazer em outros países foi outra coisa. Fui para outros países pelo IFED, Instituto de Planejamento e Desenvolvimento. Morei 6 anos em Níger e Costa do Marfim, mas em cima do planejamento para o desenvolvimento para área de especialização que o mundo me ofereceu. Depois em cinco ou seis outros países, em uma área que vem originalmente do meu trabalho profissional que é participação popular para o desenvolvimento que, em geral, acham que o desenvolvimento é feito pelos governos, mas não é bem assim. A minha atividade com a alfabetização se limitou ao Rio Grande do Norte, onde fui convidado no governo de Aluízio Alves para dirigir o departamento de Educação de Jovens e Adultos. A primeira tarefa que nós tivemos foi de conceber e aplicar a primeira experiência em massa do método de Paulo Freire, antes só tinha feito pequenas experiências localizadas para rodar o método e a gente fez a primeira experiência em laboratório em condições reais com 300 alunos na cidade de Angicos, em 1963.
IHGRN: O que significou para o senhor ter participado como coordenador na experiência de Angicos? Tanto academicamente, como estudante de Direito, e pessoalmente.
Marcos Guerra: No começo dos anos 60, os estudantes universitários eram muito estimulados, principalmente pela UNIRN e pelos movimentos que congregavam os estudantes, para devolver à população aquilo que tínhamos recebido como privilégio; éramos 100 mil estudantes universitários no país, com ensino de qualidade e gratuito. A gente levou vários programas como forma de devolver a população aquele privilégio, assim nasceu o CRUTAC, onde engenheiros, médicos, odontólogos iam às comunidades oferecer serviços ou verificar o que poderia melhorar. O programa de alfabetização foi nessa leva, estimulado pela UNIRN. Eram estudantes universitários que faziam “De pé no chão também se aprender a ler”, começada em 1961. O nosso chegou com o Governo de Aluízio Alves, em 1962, mas a primeira atividade de massa foi em 1963. O governador decidiu que deveria começar na cidade dele para dar o exemplo, também porque sabia que se houvesse repercussões como houve, repercussões complicadas para o curral eleitoral da época. Em Angicos havia 700 eleitores, na época só votava quem era alfabetizado. Dentro das 40 horas de aula, se inscreveram 300 novos eleitores, jogando fora o equilíbrio do curral eleitoral. Depois modificaram, o analfabeto começou a votar. A principal repercussão foi que o pessoal votava, não resolve tudo, pois se você vota sem ter candidato diferenciado, vai votar sempre no mesmo. Não era o objetivo do Aluizio e nem nosso formar eleitores, o objetivo era formar cidadãos. Existe um documentário de longa duração que mostra alguns ex alunos dizendo o que aprenderam em Angicos. Essa atividade de Angicos foi um divisor de águas sobre a alfabetização, desde então tornou-se referência, antes eram cartilhas do MEC que na maioria dos casos ainda se utilizam. A primeira lição “Ada da aldeia do urubu”, “Eva viu a uva”, ou seja, fonemas bem simples, imagina no Nordeste essas palavras geradoras. A primeira resultava rapidamente em risada, já que era bem complexo. Paulo Freire dizia que não se deve fazer alfabetização com cartilha, pois deveria ocorrer com palavras do cotidiano das pessoas, o tema gerador e palavra geradora tem que se reconhecer com as pessoas. O que nós fizemos em Angicos, na época, Paulo Freire chamou de conscientização, ou seja, modificar a consciência da minha relação com o mundo. Começamos por entender através de uma análise durante as 2 primeiras noites do conceito antropológico de cultura qual é o papel do homem no mundo, para que cada um se reconheça como contribuinte para modificar o mundo e não como uma peça mandada. A diferença do conceito antropológico de cultura é que o homem se veja como o centro do mundo, mas não como um marginal, assim como era visto na época, que mais tarde o Paulo Freire denominou de pedagogia do oprimido, quando ele estudou essa questão, observou que havia uma cultura do silêncio, os analfabetos aprenderam falar “amém”, “sim, senhor” seja pelo patrão ou ação das igrejas, mas nenhum dizia o que pensava ou o que queria, era desde a colonização tinham aprendido a abaixar a cabeça e obedecer. Durante as duas primeiras noites nós discutimos o conceito antropológico de cultura, a pessoa entra com o comportamento de um homem da cultura do oprimido, e na terceira noite, ele já entrava com outra visão de mundo. No cabo de duas noites, um sapateiro analfabeto já entendia o valor de seu trabalho, como contribui para o bem estar do mundo. Quem reconhece a importância do valor do trabalho passa a atribuir outro valor às pessoas pelas quais possuem relação. O objetivo principal que nós tínhamos não era a alfabetização, isso era apenas um instrumento, o valor principal de que se pretendia era a tomada de consciência do mundo e a sua relação. O homem veio ao mundo para aperfeiçoar, contribuindo em busca de algum ganho, remuneração, conforto, melhor convivência com os similares e entre outros. Esse é o conceito antropológico de cultura que para a gente era o mais importante. Apresentando rapidamente, os debates em seguida, eram durante 40 horas, uma hora por noite, é muito rápido. Ocorria a partir de palavras geradoras que tinham sido identificadas em uma pesquisa, a primeira palavra em Angicos foi “belota”, mas em outros municípios foram utilizadas outras. O conjunto das palavras geradoras traziam o conjunto de fonemas da língua portuguesa, depois de se trabalhar todos os fonemas, partia para a leitura. Meu pai pediu para conversar com um aluno de Angicos, veio um homem da idade dele, trabalhador de feira, analfabeto, mas mestre em matemática. A conclusão dos dois é que ele era analfabeto e ao cabo de 12, 15 horas, ele veio pela segunda vez, e já sabia escrever e ler um bilhete simples, ao cabo de 30 horas, entrou na biblioteca e disse “aqui é um armazém de livros”, devia ter 17 mil volumes, na época. Meu pai pediu para ele ler um verbete e dizer o que tinha entendido, ele e leu e depois escreveu um bilhete simples do que havia entendido, depois o meu pai deu um livro mais complexo, o comerciante leu, mas não entendeu todas as palavras, já que não faziam parte do seu universo ainda. Em seguida, pegou um livro em inglês, leu em voz baixa, já que não sabia ler, disse que se conseguisse escutar, era como os trabalhadores da SANBRA, empresa bordoeira da Baixa Verde, onde havia muitos trabalhadores ingleses. Ou seja, são vários testes que fizemos ao longo das 40 horas para identificar a evolução da aprendizagem. Há um livro de um dos colegas que estavam lá, Carlos Lyra, que se trata de um diário das 40 horas de Angicos que está disponível na biblioteca que mostra a evolução de hora em hora.
IHGRN: Como surgiu a ideia de trazer Paulo Freire pro experimento de Angicos?
Marcos Guerra: Há 2 versões verdadeiras, a de Calazans Fernandes, secretário de educação, ainda no começo do governo de Aluízio, ele tomou consciência de que dentre as inovações que o governo oferecia, uma importante seria na área da educação, e uma das metas era a questão da alfabetização. Calazans começou a buscar métodos diferenciados, um amigo dele, Odilon Ribeiro Coutinho, deputado federal pelo Rio Grande do Norte, tinha estudado na faculdade de direito com Paulo Freire. Um ano antes, Paulo Freire havia experimentado um método diferente com um grupo muito pequeno de cinco pessoas. Odilon sugeriu que começasse de um jeito único, ele marcou um encontro para conversar com Paulo Freire para poder apresentar. Simultaneamente, eu era presidente da União Estadual dos Estudantes, a UNIRN estava estimulando atividades de alfabetização, além disso, eu havia ido conversar com Paulo Freire, com o mesmo objetivo, ele não havia me dito que tinha conversado com Calazans, na realidade não era importante, ou seja, nós dois fomos procurar por Paulo Freire e concluímos que ele seria uma excelente solução, já que seria mais rápida e bem mais barata. 40 horas o custo aluno era de 37 dólares, valor muito baixo. Não dá para fazer uma hora por dia, já que não havia regularidade, mas 40 horas demoram cerca de cinco, seis semanas. Quando Calazans foi falar com Paulo pela segunda vez, Paulo Freire fez uma proposta para o governo, já que dirigia o programa de extensão cultural da Universidade de Pernambuco, podendo prestar uma assistência técnica ao Governo do Rio Grande do Norte. Ainda não estava na cabeça de Paulo Freire que a próxima ação já seria uma experiência de massa, mas juntou a possibilidade, já que o Governo Aluízio Alves queria ter uma atividade significativa em matéria de alfabetização. Já havia outras duas atividades muito reconhecidas, “De pé no chão também se aprende a ler” e a Rádio Rural, a terceira atividade seria muito importante para o governo.