sábado, 6 de setembro de 2025

Restauro de cadeira antiga traz a Natal relatos inéditos de sobrevivente das duas guerras mundiais

 
    Durante o restauro de uma antiga cadeira de família em Natal, daquelas que atravessam gerações, os contatos entre parentes sobre a recuperação do móvel trouxeram ao estado uma relíquia: uma correspondência escrita por uma antepassada a quem pertencia a cadeira, sobrevivente das duas grandes guerras.
    A carta, assinada por Aline Wilhelmine Kimberb Imhof e preservada por seus descendentes, data de 4 de janeiro de 1962 e foi redigida na cidade de Lucerna, na Suíça. Destinada, segundo a autora, “aos seus filhos e netos”, a mensagem atravessou o tempo e as línguas: escrita originalmente em alemão, traduzida primeiro para o inglês e depois para o português.
    Nascida em 1886, na Estônia, então parte do Império Russo, Aline narra passagens marcantes da história mundial sob sua ótica pessoal e corajosa. Em um dos trechos, ela descreve o caos ao fim da Primeira Guerra Mundial, em meio à Revolução Russa de 1917:
    “Qualquer pessoa podia portar uma arma e usá-la, fiquei sozinha com meus filhos.”
    Na tentativa de salvar o marido, Aline partiu para São Petersburgo, onde teve um encontro com Lenin, então chefe de governo da Rússia Soviética:
    “Parece que Lenin não tinha medo de morrer. Ele recebia todos que tinham algo a lhe dizer. Na entrada, recebi um papel carimbado que me permitiu subir ao andar superior.”
    Outro trecho da carta remete a fevereiro de 1918, quando tropas alemãs ocuparam sua cidade natal:
    “Durante uma intensa geada, vários homens da tropa ciclista alemã cercaram nossa cidade natal. Eles estavam malvestidos para o frio; alguns morreram no caminho, enquanto outros tremiam de frio.”
    A narrativa avança pelas décadas seguintes e segue para os horrores da Segunda Guerra Mundial, quando os países bálticos foram invadidos pelo Exército Vermelho:
    “Desrespeitando todos os acordos, ocuparam os países bálticos e estabeleceram um governo provisório pró-soviético. Isso marcou o fim da nossa liberdade. Começou então um período de expropriações, deslocamentos forçados e extermínios em massa.”
    Em um dos relatos mais impactantes, Aline relata a sensação de fuga e sobrevivência:
    “Um genocídio foi iniciado, com as lacunas sendo preenchidas por russos e asiáticos. Tivemos que deixar tudo para trás e nos sentimos muito felizes por termos saído com vida. Fomos invejados pelos infelizes que tiveram de ficar para trás.”
    Os relatos seguem até sua chegada ao Brasil, compondo um valioso testemunho de vida, memória e resistência, agora recuperado e finalmente compartilhado. A carta agora está espacialmente próxima à cadeira, talvez no mesmo lugar onde Aline possa ter se sentado para escrevê-la.
    Essa e outras histórias integram a edição nº 102 da Revista do IHGRN, a mais antiga publicação ainda em circulação no estado. Lançada em março deste ano, está à venda na livraria do Instituto Histórico e Geográfico. A renda obtida com as obras disponíveis na livraria contribui com a manutenção da Casa da Memória.

Texto: Octávio Santiago
Imagem: Maria Simões